segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA


Durante a leitura de Ensaio sobre a Cegueira, livro de José Saramago, é impossível não se lembrar do Mito da Caverna, escrito por Platão. A obra do escritor português seria uma espécie de versão às avessas da narrativa do filósofo grego. Se no Mito da Caverna, apesar dos prisioneiros não estarem propriamente cegos, o problema de visão era causado pela escuridão, pelo negro; no Ensaio sobre a Cegueira, os personagens não enxergavam porque estavam mergulhados na claridade, no branco - o "mal branco", como ficou conhecida a cegueira na história descrita no livro.

Uma vez que o negro no Mito da Caverna significava a falta de conhecimento ou conhecimento parcial da realidade, não é difícil associar o tal "mal branco" justamente ao seu oposto: o excesso de conhecimento. A analogia mais imediata para o tal excesso de luz é a religião, algo que se pode inferir nas próprias palavras do narrador: "Para estes, a cegueira não era viver banalmente rodeado de trevas, mas no interior de uma glória luminosa." (página 94). Essa analogia remete a outra obra, a música do Milton Nascimento: Fé cega, faca amolada. Há um verso nessa canção que diz: "O brilho cego da paixão e fé, faca amolada," frases de forte relação com o enredo d'Ensaio sobre a Cegueira. Portanto, podemos entender que o mal branco é uma metáfora para o conhecimento religioso mal interpretado, que cega muitas pessoas e as torna intolerantes, egoístas, impiedosas. Talvez essa seja a interpretação mais correta do significado da cegueira brilhosa dissertada por Saramago. 

No entanto, um vez que o movimento de culto à razão e de libertação intelectual ocorrido na Europa no século XVIII denominou-se iluminismo, não dá considerar impróprio entender que esse "mal branco" também pode se referir ao conhecimento como um todo e não só o religioso. Muitos intelectuais, mergulhados na teoria, acabam por não enxergar os reais problemas de determinados setores da sociedade.

Poderíamos buscar esclarecimento para essa dúvida nos personagens do livro, porém esses parecem não resolver a questão definitivamente, uma vez que nos dão pistas que servem tanto para uma interpretação quanto para outra. O oftalmologista pode significar um líder religioso cujo conhecimento sobre o assunto de nada serviu para evitar que fosse acometido pela cegueira. A prostituta e o ladrão seriam os pecadores que costumam ser rejeitados pelos fiéis. Porém, não é absurdo dizer que o mesmo oftalmologista representa o intelectual, que não enxerga a realidade social mesmo tendo muito conhecimento teórico; a prostituta e o ladrão, por sua vez, podem ser interpretados como figuras discriminadas pela sociedade. Enfim, como não pode deixar de ser, por ser uma obra alegórica, cheia de metáforas, Ensaio sobre a Cegueira pode suscitar várias interpretações diferentes, a depender do entendimento do leitor.

Não importa a interpretação que se dê, a obra de Saramago - sem qualquer traço de ironia - é brilhante. É um relato angustiante da experiência de pessoas que, sem nenhuma razão aparente, ficaram cegas e foram isoladas da sociedade, sendo forçadas a conviver num espaço fechado, com todas as terríveis implicações que essa situação costuma gerar. Dá para perceber a quantidade de questionamentos filosóficos que se pode extrair desse relato. Reflexões éticas foram o ponto forte do livro, desde a mais simples e óbvia como aquela em que se questiona o que faríamos se ninguém estivesse nos olhando, até mais sofisticadas como a que discute a valor da vida, das virtudes e da moral, num cenário de caos extremo. Além das reflexões éticas, análises e críticas sociais também ganham destaque no texto. Enfim, é um livro para se ler com um olhar crítico e reflexivo.

Não só um olhar crítico e reflexivo é imprescindível, mas também o é um olhar atento, pois a desatenção pode levar o leitor a se perder na redação com períodos extensos, bem comuns ao longo da obra; sem falar da característica peculiar do autor de não separar claramente - com aspas ou barras, por exemplo - os diálogos dos personagens; nem mesmo de usar os pontos de interrogação, para marcar as perguntas, ou ponto de exclamação, para marcar os sentimentos fortes. A dedução fica a cargo do leitor que deve apreender o contexto em que se deu o diálogo. 

É um livro fantástico, de forte impacto. Minha única ressalva é que sua parte final - as últimas cem páginas, mais ou menos - ficou um tanto longa, com trechos que pouco ou nada acrescentaram à trama. Alguns episódios e personagens, nessa última parte, me pareceram um corpo estranho na história; soaram mais como um pretexto para que o autor continuasse levantando mais questionamentos filosóficos do que como partes naturalmente integrantes da história. Por exemplo, o momento quando um dos cegos protagonistas encontra sua casa ocupada por um escritor, que também ficou cego. Outro episódio, que pareceu forçosamente enxertado no enredo, foi aquele em que alguns cegos entraram numa igreja. Não sei... para mim, esses e outros acontecimentos ficaram sobrando, e o livro poderia ter acabado antes. Só foi isso mesmo que incomodou; o resto ficou estupendo. Enfim, a leitura vale muito a pena. 

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

LISTA PARA 2015

No último dia do ano passado, fiz uma lista de livros a ler e filmes a assistir em 2014. Não consegui concluir a lista, talvez tenha cumprido a menor parte dela; por outro lado conferi outras obras que não estavam inicialmente relacionadas, o que ligeiramente ameniza a minha situação. De qualquer maneira, vou repetir o propósito e vou lançar outra lista de obras a serem apreciadas e, consequentemente, resenhadas aqui no blog, permanecendo na relação aquelas que não puder ler ou ver.


Livros:

*Clássicos
- Crime e Castigo (Dostoiésvki) (reler)
- Dom Quixote (Cervantes) (reler)
- Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado) (reler)
- O Castelo (Kafka) (reler)
- Anna Karenina (Tolstói)
- Ulisses (Joyce)
- Mulheres Apaixonadas (Lawrence)

- Ensaio sobre a Cegueira
*Nacionais premiados
- Barba Ensopada de Sangue (Daniel Galera) - Prêmio São Paulo de 2013

Filmes

- Dançando no Escuro (rever)
- A Comilança (rever)
- O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (rever)
- Cidadão Kane (rever)
- Abril Despedaçado (rever)
- E mais seis ganhadores de prêmios importantes em 2014.

Vejo agora que é praticamente a reprodução da lista de 2013. Kkkk Vamos ver se me saio melhor no próximo ano.

Feliz 2015

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A METAMORFOSE


Ler Kafka geralmente é angustiante, instigante e enternecedor; e A Metamorfose nos oferece exatamente essa experiência.  O enredo é bem criativo e curioso: ainda na cama, ao acordar, um jovem descobre que está se transformando num bicho, aparentamente um inseto, talvez uma barata; isso não fica claro no livro. Não é só o fato de estar adquirindo a aparência de um inseto que o incomoda, preocupa-o também o sério risco de perder o emprego, o que é grave porque é ele sozinho quem sustenta toda a família: mãe, pai e irmã. Na esperança de que seja algo passageiro, o jovem tenta esconder sua nova condição dos familiares, mas a metamorfose se consolida e ele vai ter que encarar a todos com aquela aparência repugnante mesmo. A descoberta vai determinar as novas bases da relação entre os outros membros da família e o jovem.

Dada a competência de Kafka, o relato da transformação é perturbador. É fácil visualizar as cenas descritas da transformação e quase dá para sentir a aflição e a tristeza que acometem o personagem durante o processo de mudança pelo qual ele passa. Contudo, a competência maior do autor se configura no momento em que ele apresenta e discute as mudanças por que passam a familia em virtude da nova e complicada situação que devem enfrentar. Agora um alerta. Para discutir as ideias que extraí do livro, é inevitável entregar parte da história. Caso não tenha lido a obra e se importe em conhecer os desenlaces por antecipação, sugiro parar a leitura.

Aos que continuaram a ler, entendi que Kafka pretendia revelar a hipocrisia que permeia as relações familiares, até mesmo entre pessoas tão próximas como pais e filhos ou irmãos, tema que por vezes evitamos por atingir pessoas que nos são caras ou por não querar acreditar que tais situações existam, mas os bons autores não fogem dessas questões e, sem reservas, aborda esse casos justamente para nos provocar. 

No livro em debate, o jovem era o único na família que trabalhava e conseguia manter a todos dentro de um relativo conforto com o suado salário que ganhava. E todos se acomodavam na desculpa de que o pai era doente e a irmã muito nova para o trabalho e se escoravam no jovem; até o "amavam". "Amaram-no" enquanto ele se revelou útil. Quando o rapaz perdeu a utilidade e constituiu um fardo, seus familiares passaram a ser indiferentes e até hostis em relação a ele, sob o fácil pretexto de que ele não era mais o filho de outrora, mas sim um criatura abjeta que deveria ser ignorada ou até eliminada do seio familiar. 

Fica claro que se acomodavam numa desculpa porque bastou a necessidade apertar para que os membros da família dessem um jeito de cortar gastos ou ganhar algum dinheiro: demitiram a empregada, alugaram um quarto da casa, o pai e a irmã arrumaram um emprego. Ou seja, eles também se metamorfosearam. Daí fica a pergunta: qual era a verdadeira metamorfose que o autor desejava nos mostrar? Talvez todas, até mesmo a que se opera em nós assim que acabamos de ler o livro.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

EXPOSIÇÃO GÊNESIS - SEBASTIÃO SALGADO

Mais uma grande atração gratuita no CCBB. Trata-se da exposição fotográfica Gênesis, com imagens feitas por Sebastião Salgado. Até dia 20 de outubro, Brasília tem a oportunidade de conferir de perto a sensibilidade do olhar que esse renomado fotógrafo dirigiu à natureza no seu estado mais puro, bem como do olhar que ele dirigiu à relação do homem com essa mesma natureza.

As fotografias são fantásticas, não só pela beleza da imagem em si, mas também pelo seu poder de provocar reflexão. Tendo isso em conta, não olhe as imagens levianamente. As fotos foram tiradas e expostas com o objetivo principal de nos fazer pensar na nossa relação com a natureza, e dessa forma devem ser vistas e sentidas. Com isso em mente, sua experiência certamente será bem mais rica. 

São mais de 300 fotos em quatro espaços diferentes, portanto é necessário um bom tempo para apreciar a exposição devidamente. Se tiver escolha, não leve crianças muito pequenas; se levar, prepare os braços e a paciência. Meu filho de cinco anos curtiu bastante, não deu trabalho algum; já o de três, mais ou menos na metade da visita, dispersou-se, cansou-se e pediu colo.  

Como se trata de uma exposição fotográfica, nada melhor do que utilizar fotos para contar minha experiência.   



Minhas imagens preferidas



















quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O MENDIGO QUE SABIA DE COR OS ADÁGIOS DE ERASMO DE ROTTERDAM


O título em si do livro já intimida um bocado e, quando não assusta de vez, autoriza no máximo uma aproximação respeitosa. Acreditando que poderá ter vida mais fácil ao vencer a sua capa, o intrépido e desconfiado leitor supera o preconceito inicial e resolve abrir o exemplar (afinal de contas é uma obra agraciada com o prêmio Jabuti). Aí é que vem o engano: o seu conteúdo se revela ainda mais intimidador, de modo que, se o atrevido leitor não for paciente, não permanecerá em sua páginas por muito tempo. É assim mais ou menos a relação com O Mendigo que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam, de Evandro Affonso Ferreira. 

Na verdade, nem a sensação de ter entrado de fato no livro eu tive. Parece que acompanhei tudo a distância. É como um sujeito que de papel na mão chega ao endereço de um teatro alternativo indicado por um colega de trabalho. Ele hesita em seguir adiante porque a fachada do edifício não é nada convidativa. Como já tinha chegado até ali, decide se aproximar do local, mas as portas estão trancadas, os vidros das janelas estão embaçados e só lhe resta uma pequena frincha na parede de onde, com um só olho, pode acompanhar o espetáculo que se desenrola lá dentro. A posição é desconfortável, a peça é confusa, o espectador não consegue se envolver emocionalmente, e logo ele se cansa e se distrai. 

Foi assim que me senti ao ler a história de um homem bastante erudito que, perturbado por conta de uma desilusão amorosa, decide morar nas ruas de uma grande cidade. No seu monólogo, esse erudito solitário, já perto da loucura, relata a sua relação com a mulher amada, o fora que levou dela, sua esperança de rever esse grande amor, bem como faz reflexões sobre sua vida, sobre a vida de outros mendigos, sobre a sociedade em geral. E toma-lhe uma enxurrada de palavras difíceis, construções sintáticas inusitadas, neologismos, citações filosóficas, nomes de figuras mitológicas pouco conhecidas e, claro, reprodução de vários adágios de Erasmo de Rotterdam; sem falar na repetição frequente, no relato do protagonista, de várias expressões e desejos seus, como se fossem bordões que adquiriu na sua luta diária para não deixar as lembranças escaparem.

Como se pode perceber é uma leitura difícil e arrastada, que exige atenção, paciência e consultas constantes a dicionários e ao Google. Não vou dizer que é um livro ruim, nem tampouco pretensioso, enganador ou afetado; não é por aí. É um livro pouco amistoso, vamos dizer. Essa antipatia se deve à escolha radical de Evandro Affonso Ferreira de privilegiar a forma em detrimento de um comunicação mais aberta com o leitor comum, o que parece ser uma característica do autor. O resultado é um livro culto, com boas percepções sobre a vida e sobre a sociedade, mas praticamente sem emoção. 

É como se fosse um convite para um encontro, num começo de noite de uma quinta-feira qualquer, reservado a um grupo seletíssimo de pessoas. Nesse evento, os poucos convidados, de pernas cruzadas e óculos na ponta do nariz, exaltam, em tom comedido e excessivamente formal, as virtudes estilísticas da obra em discussão. Hummm...! Não sei... pode até ser legal, mas eu prefiro uma festinha mais animada. 

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

A GAIOLA DOURADA


Nem só de filme "cabeça" vive o cinema europeu, aí incluído o francês, que tem lançado nos últimos anos, sem qualquer constrangimento, filmes com apelo mais comercial, principalmente no gênero comédia. Três exemplos de produções recentes dessa categoria, e que já foram resenhadas aqui no blog, são: Os IntocáveisQual é o Nome do Bebê e Minhas Tardes com Margueritte. Convenhamos: não dá para ficar só em filme "cabeça" o tempo todo! Obras que se preocupam mais com a diversão do que com a densidade também têm o seu lugar, ainda mais quando seu propósito é nos fazer rir. 

Ainda que fazer pensar profundamente sobre algum tema não seja o seu principal objetivo, não se pode afirmar que esses filmes sejam totalmente vazios, sem qualquer conteúdo. Mesmo essas comédias francesas mais comerciais costumam oferecer algum questionamento um pouco mais elaborado. A diferença é que o tratamento dessa reflexão é bem ameno, de maneira a não prejudicar a natureza principal do filme que é proporcionar diversão despreocupada ao telespectador. 

Esse é o caso de A Gaiola Dourada, película produzida numa parceria firmada entre França e Portugal. O enredo apresenta um casal de imigrantes portugueses (ele é pedreiro; ela, zeladora de um prédio), que vive em Paris há vários anos. Um dia os dois recebem uma herança milionária da qual só poderão usufruir se deixarem suas vidas na França e se transferirem ao seu país de origem para assumirem a administração do negócio. O problema é que esse casal já tem uma vida estabelecida na França, tem filhos franceses e se tornou muito importantes na vida das pessoas que o cercam, como os patrões, os moradores do prédio e os parentes que também moram nesse país. Essas pessoas todas, ao descobrirem que podem ser "abandonados," começam a armar situações para que o casal fique. 

O filme diverte, apresentando situações bem engraçadas; e suavemente nos faz refletir; o seu tal questionamento um pouco mais elaborado consiste no dilema entre ficar num país estrangeiro ao lado da família e amigos, mas levando uma vida simples, ou realizar o sonho de voltar para a terra natal, podendo desfrutar de uma vida de luxo, mas sem a família e os amigos. 

Tudo bem... A Gaiola Dourada é divertido, engraçado, serve para matar o tempo, mas não dá para dizer que é um grande filme. A título de comparação, achei-o inferior aos outros três acima citados. Se, dentro desse segmento de comédias mais descompromissadas, Os Intocáveis e Qual é o Nome do Bebê eu classificaria como muito bons; Minhas Tardes com Margueritte, como bom; eu diria que A Gaiola Dourada é apenas mediano. Isso porque algumas passagens foram previsíveis, algumas soluções foram fáceis (sobretudo o final), uma ou outra piadinha era exageradamente feita para agradar e o dilema do casal foi mal explorado no seu aspecto emocional. De qualquer maneira, é um filme que cabe bem num momento mais preguiçoso.

Trailer


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O CAÇADOR DE PIPAS - LIVRO



Sucesso mundial de vendas no começo da primeira década do atual milênio, esse livro só chegou às minhas mãos recentemente. Logo vi que essa obra deveria ser encarada como o que ela realmente é: uma forma simples de retratar uma história, sem recorrer a grandes reflexões filosóficas, nem a refinadas críticas políticas ou sociais, muito menos a grandes manobras linguísticas ou inovação na forma. Não espere nada denso ou profundo como, só para ficar em dois exemplos,  Crime e Castigo (Dostoiévski) ou Ensaio sobre a Cegueira (José Saramago). Não é livro para discussões acadêmicas. Poderíamos dizer que é um livro do tipo mais popular, para matar o tempo.  Percebe-se isso logo nas primeiras linhas por conta da linguagem simples adotada pelo autor. Enfim, O Caçador de Pipas não tem estofo para para se tornar um grande clássico da literatura, como Cem Anos de Solidão (Gabriel García Márquez), para citar outro exemplo. Todavia, enxergando-o como de fato ele é, O Caçador de Pipas pode ser uma boa experiência de leitura. 

Eis um pequeno resumo: Amir e Hassan têm, ao mesmo tempo, uma relação de amizade e de patrão/empregado. O primeiro é filho de um homem rico e importante na cidade de Cabul, Afeganistão. O segundo é filho do empregado da família do primeiro. Como moram no mesmo lote, eles crescem e brincam juntos e se tornam muito próximos. Contudo, algo abala esse equilíbrio: no começo da adolescência, Amir falha com seu amigo, que passa por um terrível infortúnio. A partir desse dia, o fantasma da culpa passa a perseguir Amir. O título do livro deve-se à habilidade de Hassan em apanhar as pipas que eram cortadas nos campeonatos desse tipo de brinquedo que ocorriam anualmente em Cabul. É correndo atrás de uma pipa, num desses campeonatos, que Hassan vive sua desventura. 

Como todo livro mais popular, O Caçador de Pipas apresenta na sua fórmula: personagens um tanto simples, frases de efeito, tom mais emotivo e drama mais carregado. O problema é que muitas vezes esse forte apelo emocional esbarrou no sentimentalismo barato e ficou piegas; e isso me incomodou. Frases de efeito de cunho sentimental contribuíram para esse toque mais piegas, como essa frase aqui: "Por você eu faria isso mil vezes." Por vezes, o autor também errou a mão no drama; e, em muitos momentos, a história ganhou ares de dramalhão hollywoodiano com pitadas de novela mexicana; tudo por conta de coincidências inacreditáveis e artificiais, que deixaram algumas situações um tanto inverossímeis. 

Achei ainda que essa grande culpa que Amir carrega por todo o livro foi supervalorizada. Tenho para mim que ninguém ficaria tão perturbado, por tanto anos, por algo que fez no começo da adolescência, período em que invariavelmente fazemos alguma bobagem. De fato, o erro de Amir foi bem grave, mas para mim não o suficiente para justificar o pesar tão grande que o personagem sente por boa parte de sua vida.

A grande virtude do livro é sua honestidade. Ele não quer ser o que não é; não quer nos enganar. Me irritam livros que tentam vender uma profundidade que não têm. Já que dei exemplos antes, aqui vai um de um livro enganador: Fim, escrito por Fernanda Torres (já resenhado nesse blog. Link aqui). O Caçador de Pipas não apela para esse recurso, e isso é bom porque nos desarma, e nos abrimos para acompanhar, sem grandes preocupações intelectuais, uma trama muito triste, cheia de dramas e reviravoltas, que tem como pano de fundo as guerras pelas quais passa o Afeganistão bem como as transformações políticas e sociais decorrentes das crises vividas por esse país. Foi interessante conhecer um pouco mais da cultura do Afeganistão e os problemas que ele enfrentou.

Descontando o excesso de drama e coincidências difíceis de engolir, é um bom livro para quem deseja se distrair e se emocionar. Khaled Hosseini consegue contar um boa história: forte e triste; surpreendente em alguns momentos, previsível em outros; trágica em muitas passagens, bonita em outras poucas. O final foi bem tocante e me surpreendeu. Eu esperava algo bem sentimental como foi na maior parte do romance, mas fui surpreendido e tocado por um arremate bem sereno e bonito.